Por Marcia Padilha e Adriana Martinelli
Nas últimas semanas, mais uma vez, a grade curricular (esta resistente da era industrial) foi colocada em cheque. Agora pelo neurocientista e pós-doutor Fernando Louzada, professor da Universidade Federal do Paraná, que dedica sua carreira à cronobiologia, área do conhecimento que estuda os ritmos biológicos e, especificamente, os ritmos de sono e sua relação com a aprendizagem, no caso que nos interessa. Convencido de que os ritmos biológicos são uma característica inerente de cada indivíduo, Louzada propõe que a escola adapte sua grade curricular de forma a atender as diferenças de ritmo e atenção de alunos de hábitos vespertinos e matutinos. A proposta de Louzada gerou grande repercussão nas redes sociais e trouxe à baila o velho questionamento sobre a organização dos tempos e espaços escolares em um currículo concebido como uma grade.
Em resumo, o estudioso propõe um horário comum a todos os alunos com atividades que ocorreriam no meio do período da manhã (das 9h às 12h por exemplo). E horários do comecinho da manhã (das 7h às 9h) e do finalzinho da manhã (das 12h às 13h) seriam aproveitados para atender a grupos de alunos de acordo com seu ritmo de sono. O resultado seria promover melhores condições de aprendizado aos alunos, segundo estudos desenvolvidos há décadas com a participação de Louzada.
Ora, com tantos problemas de qualidade educativa, estaríamos aptos a encarar mais esse desafio no atual debate educacional brasileiro? A resposta é: sim. Toda vez que o empecilho a uma solução inovadora for a “grade” curricular, devemos duvidar de que seja um empecilho real. A tal grade transformou-se num dogma. No entanto, a flexibilização do tempo e do espaço dada pela virtualização de quase tudo hoje em dia evidencia o quão anacrônico é esse dogma.
A tal grade de horários e disciplinas vem se interpondo a inúmeras (quase todas) propostas de inovação educativa. Então, é quase passada a hora aproveitar os recursos tecnológicos para criar possibilidades de incremento da qualidade da educação por meio de um atendimento mais humano e mais personalizado às crianças dentro de nossas escolas públicas e privadas. Além disso, temos a grande chance de implantar a aprendizagem híbrida, composta por momentos individuais e momentos de grupo, por momentos presenciais e momentos on-line e por momentos na sala de aula e momentos nos diversos espaços educativos da cidade. A tecnologia aliada a novos modelos pedagógicos torna bastante mais factíveis mudanças como a proposta por Louzada.
E, como é do feitio desta coluna, trazemos aqui um exemplo real de como a flexibilização de horários e grupos de trabalho vem sendo feita no dia a dia de outro estudioso, o docente do ensino médio e coordenador do curso de graduação de Letras do Instituo Singularidades Marcelo Ganzella. Ele vem desenvolvendo experimentações exitosas que podem atender os estudantes em suas particularidades, construindo caminhos para um ensino mais personalizado, dinâmico e significativo. Suas estratégias não visam atender especificamente as diferenças de ritmos de sono, mas demonstram que novos modelos de organização de horários e locais de estudo são perfeitamente viáveis.
Marcelo está trabalhando com alunos de duas séries do curso de graduação de Letras (1º e 3º semestre), que estão cursando duas disciplinas diferentes (1º – Teoria do Poema – e estudando o gênero dramático/teatro; 2º – Estudos sobre Multimodalidade). As duas turmas estão estudando as relações entre diversas linguagens para a construção de sentido. Previamente, eles assistiram em casa uma entrevista com uma especialista da tragédia grega Medeia (disponível no Youtube). Em seguida, as duas turmas foram ao teatro, juntas, no horário da aula, assistir a uma releitura da peça Medeia (lá no bairro de Santa Cecília, em São Paulo). Durante esse período, os alunos do 1º semestre também leram a peça Gota d’Água, do Chico Buarque (que também é uma releitura da Medeia). Na aula após o teatro, todos se reuniram para conversar sobre o espetáculo, a experiência que tiveram e os sentidos que atribuíram à peça. As duas turmas viram o mesmo espetáculo e a mesma entrevista. Porém, somente o 1º semestre leu Gota d’Água e somente o 3º estudou Multimodalidade. Com isso, todos os alunos tinham algo a acrescentar no bate-papo sobre a peça, cada um no seu tempo, ritmo e espaço.
Com os alunos do 3º semestre, que estão cursando Morfologia da Língua Portuguesa, o trabalho foi focado em formação de novas palavras (neologismos). Eles leram em casa, no tempo de cada um, um livro sobre neologismo, além de um artigo on-line, no qual um grupo de pesquisadores explicaram os procedimentos metodológicos para identificar neologismos. Os textos foram discutidos e, a partir desse debate, surgiu a necessidade de sair à procura de neologismos. Foram a um shopping, novamente, durante o tempo da aula. Os alunos saíram, munidos de seus celulares, para registrar (em foto ou em áudio por entrevistas com vendedores) possíveis neologismos usados no comércio. Depois, em casa, no seu tempo e ritmo, cada um aplicou os procedimentos metodológicos aprendidos no artigo científico e construíram, colaborativamente (via Moodle) um glossário de neologismos encontrados nessa pesquisa de campo, explicando seu significado no contexto e seu processo morfológico de formação.
Personalizar o atendimento aos estudantes é sabidamente um caminho para a melhoria da qualidade educativa. E isso não precisa mais ser um privilegio dos cantinhos com atividades diferenciadas propostas para os pequeninos da educação infantil. Tecnologias móveis, tecnologias de compartilhamento e colaboração, mineração e visualização de dados para acompanhamento de aprendizagem e a quebra de um modelo mental formatado por uma grade (!!!) são aliados poderosos de uma educação de mais qualidade porque mais personalizada, mais humana e mais acolhedora das diferenças e dos talentos de cada estudante. Sonhos? Não. Construção de estratégias, metas, acompanhamento e gestão de inovação têm gerado respostas viáveis. E esse é, por excelência, o papel dos gestores educacionais, responsáveis pela gestão da escola, da sala de aula e da aprendizagem. Mãos à obra.
Para ver matéria sobre o sono e Louzada (Porvir)
Livros de Fernando Louzada e Luis Menna Barreto: O sono na sala de aula, Editora Viera & Lent, e Relógios biológicos e aprendizagem, Editora Edesplan.
Para conhecer o trabalho de Marcelo Ganzella contate o educador pelo facebook: marcelo.ganzelamartinsdecastro
Marcia Padilha e Adriana Martinelli são empreendedoras da MEIO, educadoras e articuladoras de inovações na educação.