UMA AÇÃO que planta sementes é uma boa definição para os LabCEUs – Laboratórios de Cidades Sensitivas, que funcionam nos Centros de Artes e Esportes Unificados. O projeto propõe a ocupação dos laboratórios multimídia de informática, ao mesmo tempo em que estimula a autonomia de crianças e jovens e a interação com a comunidade e as cultura locais. As ocupações – como são chamadas as experiências financiadas – geram frutos, sejam novos projetos, sejam coletivos de jovens para dar continuidade ao trabalho. Se uma parcela da população brasileira tem horror aos programas sociais, porque é preciso ensinar a pescar e não dar o peixe, então o LAbCEU deveria ser uma unanimidade nacional, por seu poder de estimular a cidadania e o protagonismo em suas diversas facetas.

O programa é uma iniciativa do Ministério da Cultura (Minc), por meio da Secretaria de Políticas Públicas, em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com execução do InCiti – Pesquisa e Inovação para as Cidades. Surgiu quando o Minc procurava um formato para trabalhar o que vem sendo chamado de inovação tecnológica e criativa na cultura. À época, a UFPE estava envolvida no desenvolvimento do Centro de Cultura de Umbigado, que se relacionava com esse objetivo. Assim veio a ideia de trabalhar nos telecentros com a metodologia que estava sendo aplicada ali.

“Não é uma metodologia por oficina, mas uma mistura de residência artística com ciência de garagem. Além de aplicar esse método, precisávamos ver o funcionamento, o que poderia trazer de output. E, a partir desses telecentros, acionar o território e analisar como isso poderia transformar o entorno. Faz todo sentido porque, na raiz, o CEU é uma praça para a comunidade”, explica Ricardo Ruiz, um dos coordenadores do Inciti – Labceus.

A forma como a proposta é aplicada pode – e sempre deveria poder – variar de um CEU para outro. As ocupações, que podem levar de dois a quatro meses – vão desde produção de áudio e vídeo, passando por construção de robôs, até urbanismo, museologia e agroecologia. Cada projeto tem um bolsista local e um bolsista da atividade – que não necessariamente precisa fazer parte da comunidade. Essa combinação parece funcionar muito bem à medida em que integra o conhecimento local com uma nova cultura e conhecimento.

Na primeira fase de implantação do programa foram contemplados dez CEUs de todo o país, de um total de 260 candidatos. Em julho de 2015, na segunda etapa, com 221 inscrições, foram anunciadas mais 15 propostas de ocupação em dez CEUs, sendo dez projetos com dois meses de duração e cinco projetos de quatro meses, um investimento previsto de R$ 160 mil. Em outubro de 2015, o Ministério da Cultura estava preparando uma terceira chamada pública, que incluirá pesquisas teóricas para fundamentar o trabalho de produção cultural em sua relação com o entorno.

 

Uma explosão de criatividade
confira algumas das inciativas da galera nos espaços

Residencia-artistica-com-ciencia-de-garagem-01CRIAÇÃO DE PERSONAGENS 3D
LABCEU DE SERTÃOZINHO (SP)
Provocar um processo de criação autônomo era o objetivo da ocupação Criando Personagens 3D, da primeira chamada dos LabCEUs, realizada no CEU da periferia de Sertãozinho, município do interior do Estado de São Paulo. Aberta a todas as idades, a ocupação teve participação de cerca de 30 pessoas, entre seis e 24 anos.

À primeira vista, a ideia de criar personagens 3D com software e hardware livres pode parecer muito distante da realidade de crianças da periferia de um pequeno município – portanto, um objetivo complicado. Mas o que a bolsista de atividade, Katherine Diniz, percebeu, no decorrer do projeto, foi que o repertório audiovisual e de games das crianças e jovens hoje é muito rico. Rapidamente elas conseguem colocar em projeto aquilo que anseiam como consumidoras de conteúdo.

Por isso, se aplicou em mostrar aos participantes que a ocupação não teria dinâmica de aula, mas de oficina. “O maior desafio foi o paradigma cultural. No começo, eles achavam que eu tinha que dar aula, que todos deveriam estar na mesma etapa. E esperavam que eu desse autorização para iniciarem a próxima etapa. E até quando percebiam um oceano de possibilidades e a liberdade de avançar e criar, eles se questionavam sobre até onde ir. Mas a dúvida não os inibia”, lembra Katherine.

Os participantes trabalharam com compartilhamento de conhecimento. “Eu não presenciei um colega dizer não a um pedido de ajuda. Eles não sabiam nada, mas quando já tinham passado por um desafio e podiam ajudar um amigo, ficavam muito felizes de ver que a dificuldade não foi em vão”, diz a bolsista. A primeira atividade foi criar uma história em quadrinhos. Os desenhos feitos à mão eram escaneados e vetorializados. Os personagens eram então produzidos em massinha para serem desenvolvidos com apoio de recursos digitais livres, como Blender (modelagem e animação 3D), Gimp (tratamento de imagem) e InkScape (diagramação e desenho vetorial). Depois, puderam imprimir os projetos em uma impressora 3D.

Ao longo do processo de criação dos personagens, a internet foi a fonte de pesquisa. Os participantes tiveram contato com comunidades de compartilhamento de projetos livres, com formato aberto e liberados em Creative Commons, licença que permite a reutilização sem necessidade de pagamento de direitos autorais.

As histórias que se acumularam ao longo da jornada do LabCEU Sertãozinho são uma mostra de que, ao abrir portas, as crianças e jovens de baixa renda abrem horizontes. Julha, de 6 anos, entrou no laboratório junto com o irmão mais velho, que vinha participando das atividades e, naquela tarde, tinha a tarefa de cuidar da pequena. Katherine lhe deu massinha de modelar e o irmão se comprometeu a transpor ao computador as ideia de Julha. Depois de enfileirar sete personagens feitos em massinha ao lado do computador, a menina não se contentou em observar e insistiu em pilotar o teclado.

“Como ela não sabe ler, focamos nos desenhos dos ícones e nos atalhos do Blender para memorizar as ferramentas – igual ao que os profissionais fazem, na verdade, porque eles não clicam em botões na interface o Blender, todos usam atalhos”, diverte-se Katherine. Funções básicas, como modelagem poligonal, como subdividir e arredondar um cubo com o modificador subsurf, como fazer secções (cortes em anéis de vértices), como achatar (scale) e como fazer extrusões de faces (extrude), para criar segmentos”, detalha Katherine. Foi então que, a partir de um cubo hipotético, a Julha fez uma tartaruga. Vitória para todos os envolvidos.

Quando havia chegado à metade do tempo da ocupação, os participantes estavam sedentos por avançar no universo dos jogos digitais. Organizaram, então, um abaixo-assinado, que Katherine enviou para a segunda chamada dos LAbCEUs e foi aprovado. “Eles, com dez anos, perceberam que uma folha com assinaturas trouxe uma vivência de quatro meses de criação de jogos. Isso é importante”.

Na segunda fase, as experiência não foram menos entusiasmantes. O participante de 24 anos, Looan, que já tinha alguma experiência em criação de games, aprendeu a utilizar softwares livres. O arquivo de seu game desenvolvido no LabCEU Sertãozinho já tem 8Gb. O projeto está indo tão bem que os responsáveis pela incubadora da USP de Ribeirão Preto estão interessados em adotá-lo.

 

Residencia-artistica-com-ciencia-de-garagem-02A MÁQUINA DE NÃO FAZER NADA
ÁGUAS DE LINDOIA (GO) 

Integrante do Calango Hacker Club, Odair Scatolini, mais conhecido como Oda, ficou surpreso ao perceber que mesmo com uma conexão limitada à rede mundial de computadores os jovens da localidade já utilizavam a internet como fonte de informação para produzir artefatos não encontrados no município. Um coletivo de Skate mantinha um canal de vídeo na plataforma YouTube em que compartilhava suas peripécias e chamava outros coletivos de skate para desafios. Para isso, haviam construído um suporte para a câmera com cano de PVC, utilizando um tutorial encontrado na rede. O grupo logo se animou de participar da ocupação do CEU Águas de Lindoia.

A falta de conexão à rede no laboratório multimídia foi um obstáculo a ser superado por Oda, que é técnico em eletrônica com especialização em computação, no início da ocupação Faça parte do Movimento Maker. Para garantir que os jovens pudessem programar na linguagem processing, software livre, e criar protótipos com Arduíno, o bolsista gravava todos os programas, vídeos e material para uso no laboratório em pendrive e compartilhava com os presentes na ocupação, jovens de 12 a 15 anos.

Apenas na penúltima semana da ocupação o laboratório multimídia foi finalmente conectado à internet. Ainda assim, o resultado impressiona, relata Odair: “Em menos de dois meses eles estavam fazendo os robôs. Programaram um robô skatista, Betinha, para desviar de obstáculos. Uma evolução incrível para quem nunca havia feito algo parecido antes”. Terminada a ocupação, os participantes decidiram que queriam continuar naquele processo de aprendizagem e produção. Criaram então o Lagartixa Hacker Club no CEU – uma referência ao Calango. “Eu vejo, pelas fotos que eles postam, que o trabalho está sendo replicado. Tem gente nova, que não participou da ocupação. Eles já criaram um clássico da cultura maker, a ‘máquina de não fazer nada’, uma caixa com uma mão robótica que, quando acionada, se move apenas para desligar o circuito”, conta, entre risos.

 

 

Residencia-artistica-com-ciencia-de-garagem-03COMUNICAÇÃO EM TODAS AS MÍDIAS
SÃO FELIX DO XINGU (PA)O projeto Voz da Ilha nasceu do desejo dos jovens da comunidade do distrito de Taboca, em São Félix do Xingu (PA), de fazer a própria comunicação. “Conversando com a comunidade, eu identifiquei essa vontade e aí inscrevemos o projeto”, explica Gleison Martins, indígena da Etnia Kokama, Natural de Tefé (PA) e ativista de rádios livres desde 2009.

No início dos trabalhos, Martins promoveu uma série de debates – estimulados por meio de documentários ou apresentações – sobre a importância da comunicação, especialmente quando se trata de inclusão e justiça etno-social. “No curso que demos sobre movimentos sociais, tivemos 200 participantes. Tratamos de justiça social e abordamos as diferentes etnias e destacamos a cultura do povo Kokana”, diz Martins.

Os jovens passaram a publicar suas produções tanto no site do projeto dos LabCEUs quanto no blog da rádio livre Voz da Ilha. Os temas são sempre engajados e vão desde a decisão da Justiça Federal de Marabá, sudeste do Pará, que anulou a compra de terras na região de São Félix do Xingu por empresa estrangeira, por serem griladas, passando por notícias de outras rádios livres, até as manifestações por passe livre. O blog tem ainda entrevistas em áudio, utilizadas na transmissão dos programa da rádio Voz da Ilha, instalada na base do CEU.

A programação da rádio é bastante diversificada, com vários programas de música e informações sobre a realidade local. Os jovens Pedro Beraldo, Ricardo, João Vitor e Ailani transmitem um programa que discute problemas de São Félix, relata Martins.

Martins conta que, com o fim da ocupação, os jovens continuam mobilizados e produzindo conteúdo para o blog e outras plataformas da internet: “Os meninos me ligaram para relatar que o prefeito havia prometido asfaltar uma das ruas e não o fez. Então eles pegaram o celular, filmaram a situação, foram até a prefeitura, pediram para falar com o responsável e assim a coisa andou e agora há asfalto e iluminação pública”. Para o futuro, o sonho é criar uma TV Comunitária, com apoio do coletivo argentino Antena Negra.“Eu conheci eles em 2010 e desde então mantenho contato por e-mail. Agora estamos planejando começar um projeto de TV livre por aqui também”, diz Martins.

 

Residencia-artistica-com-ciencia-de-garagem-04POR UM MAKER SPACE
LUÍS EDUARDO MAGALHÃES (BA)Quando se deparou com o edital do LabCEUs, Eduardo Pimentel tinha como hobby lidar com software e hardware livre. Conhecendo o município de Luís Eduardo Magalhães, no interior da Bahia, teve a ideia de mostrar alternativas profissionais e criativas aos jovens do bairro de Santa Cruz.

A proposta, introduzi-los no universo do Arduíno, kit de hardware livre, era apenas o pontapé para conversar sobre desenvolvimento, programação e criação. Mas, antes disso, Pimentel teve de rever com eles conceitos de lógica e matemática.

“Como havia uma defasagem nessas matérias, dei um passo para trás. Mas falamos de lógica, matemática e tecnologia com ênfase na cidadania, na tecnologia como forma de unir pessoas e resolver problemas. Porque hoje os meninos têm celular apenas para mandar mensagem por WhatsApp e postar nas mídias sociais. Não geram conteúdo, não geram conhecimento”, afirma Pimentel. Em uma segunda etapa, com o kit Arduíno em mãos, a turma começou a construir protótipos: um guincho com palito de sorvete e motor de CD-Room – para mostrar o potencial de reciclar eletrônicos. Também foram usados sensores para apresentar as possibilidade de interação de software e hardware livre com o mundo externo.

As novidades cativaram os jovens. Iago, de 14 anos, foi à primeira oficina e disse que não voltaria mais. Mas continuou aparecendo e agora é um dos mais interessados. “Mudou a relação desses meninos com a tecnologia. Agora eles se perguntam como aquilo funciona. Mesmo nas redes sociais, a postura é outra, participam de grupos que debatem Arduíno e tecnologias open source”, conta Pimentel.

Com a conclusão do projeto – que teve duas fases, uma de dois meses e outra de quatro – a turma começa a pensar em um maker space. Estão em busca de financiamento. “Quero que eles tenham uma bolsa para trabalhar no laboratório. Há potencial para desenvolver soluções para a comunidade. As placas solares por aqui esquentam mais do que o permitido. Com Arduíno, podemos colocar sensores para um resfriamento com água”, diz.

 

Residencia-artistica-com-ciencia-de-garagem-05DIVERSIDADE EM DEBATE
ERECHIM (RS)A ocupação Remixando Áudio e Tecnologia em Erechim (RS), no CEU do bairro de Grande Progresso, onde há diversas comunidades criadas por ocupações informais, se propôs a discutir, entre diversos temas de interesse social, também a presença de negros e negras na sociedade gaúcha, com foco em Erechim, claro. A ideia é produzir conteúdo para uma rádio livre utilizando tecnologias livres.

Na primeira etapa, André Luís de Jesus Pinto, que já tinha bastante experiência em pontos de cultura, buscou articulação com o entorno do CEU. Visitou pessoas no bairro, se conectou com organizações não-governamentais, movimentos sociais, organizações religiosas de matriz africana, além de outras escolas.

A partir daí, foi a hora de trazer as crianças para o laboratório multimídia do CEU Erechim. A primeira etapa do projeto ofereceu noções básicas de eletrônica, oficina de apropriações de ferramentas básicas de GNU/Linux. Depois, em uma aula de metareciclagem, ensinou as crianças que há muito valor no que algumas pessoas consideram lixo eletrônico. Em novembro de 2015, construíram um transmissor de baixa potência para colocar pra funcionar a rádio “Outro Lado da Ponte”. Os trabalhos agora são para começar a produzir e transmitir.