revista-arede-edicao-99-entrevista-01Você vai conhecer aqui o trabalho de Hal Plotkin, senior Open Policy Fellow do Creative Commons USA, tendo atuado como senior Policy Advisor do Departamento de Educação dos EUA, responsável pela implementação da política pública de REA no governo Barack Obama. Plotkin será o palestrante magno do Fórum ARede Educa, dia 20de gosto, em São Paulo – evento voltado a educadores e gestores de educação. A participação é gratuita e as inscrições estão abertas.

 

Por Priscila Gonsales
Texto originalmente publicado na revista ARede (2014)

Nada menos que 2 bilhões de dólares foram destinados, até 2015, para a produção de materiais curriculares com licença aberta, voltados a estudantes de universidades comunitárias e colégios técnicos dos Estados Unidos. Mais que investimentos isolados, esses recursos resultam de uma ousada política de Recursos Educacionais Abertos (REA), criada e capitaneada por um entusiasta do livre acesso ao conhecimento. Ao contrário de seus antecessores em um cargo de alto escalão, ele não estudou em Harvard, Yale ou Stanford. Mas foi formado exatamente por uma das 1700 universidades comunitárias que existem no país e atendem cerca de 18 milhões de alunos. As universidades comunitárias ou são totalmente subsidiadas pelo estado ou são privadas com mensalidade baixa e sem qualquer exigência de admissão, como as faculdades renomadas.

Nascido em Palo Alto, na Califórnia, Hal Plotkin foi procurado pelo secretário de Estado Arnie Duncan, amigo pessoal do presidente, que decidiu trazer para sua equipe pessoas de faculdades comunitárias que estivessem fazendo um bom trabalho. Plotkin liderava uma iniciativa dos livros digitais no Foothill-De Anza Community College District, no Vale do Silício, Califórnia, ao mesmo tempo em que mantinha uma coluna sobre tecnologias digitais na educação no jornal São Francisco Chronicle. Ao assumir o cargo no governo, uma das suas primeiras ações foi partir da experiência da Foothill-De Anza para desenhar um programa nacional de oferecer recursos educacionais abertos em todo o país.

Plotkin mantém um blog onde registra informações sobre iniciativas REA e produziu um guia para apoiar instituições de ensino interessadas em usar, criar e compartilhar recursos abertos – publicação on-line em inglês, licenciada em Creative Commons, que já teve mais de 10 mil downloads. O projeto que mais trouxe repercussão para o tema dos REA, segundo Plotkin, foi o concurso Why Open Education Matters (Por que materiais abertos), realizado com apoio da Open Society Foundation, em 2012, que premiou vídeos e animações que explicassem o conceito de REA. Foram 300 inscritos de vários países.

Nesta entrevista, concedida durante o OER Meeting 2014, organizado pela Hewlett Foundation em Sausalito, na Califórnia, no final de abril, Plotkin compartilha os desafios e as convicções de uma política pública educacional focada em oferecer como REA todo material financiado pelo dinheiro público e também em acelerar o processo de inclusão digital em todas as escolas estadunidenses, de forma que todos os estudantes tenham acesso a livros didáticos eletrônicos até 2017.

Como surgiu seu interesse em apoiar a criação de REA?
Hal Plotkin – Em minha coluna no jornal São Francisco Chronicle, escrevia sobre o abismo
entre o que as tecnologias digitais estavam tornando possível e o que estava sendo feito em educação. Um dos pontos era a necessidade de tornar disponíveis materiais de estudo na internet para acesso rápido e barato. Porque muitos estudantes, de origem pobre, não têm condições de comprar um livro didático de matemática que custa US$ 180, por exemplo. Aí eles acabam desistindo de estudar. Quando surgiu uma vaga no conselho da universidade em que estudei, os demais integrantes do conselho sugeriram que eu me candidatasse. Então levantamos recursos e pagamos professores para adaptar o material que tivessem para a internet. Pedimos voluntários entre os docentes para colocar no ar. Nunca imaginei que isso me levasse a assumir um cargo no governo, anos depois.

Quais são os principais desafios em relação ao incentivo à produção de REA?
Plotkin – Meu desafio principal é dar às pessoas a esperança de que as coisas possam ser diferentes e lutar contra a ideia de que tudo é ruim, é inútil tentar porque sempre vai dar errado. O maior problema é ajudar as pessoas a ter esperança de que o que existe hoje não precisa ser permanente e, se trabalharmos juntos, podemos mudar a situação de milhões de pessoas no mundo. Mas a primeira coisa que temos de mudar é a nós mesmos. O grande problema não é como mudar, é acreditar que as coisas podem mudar. Uma vez que as pessoas se dão conta disso, elas conseguem juntas enxergar as soluções, e essas soluções, em alguns casos, como os REA, são muito óbvias, fáceis e baratas. E também muito engajadoras, envolvendo mais pessoas.

Poderia contar um caso marcante relacionado ao aspecto econômico do uso de REA?
Plotkin – Foram tantos… Por exemplo, o primeiro livro didático que criamos em 2003 na faculdade comunitária do Vale do Silício, o Livro de Estatística de Educação Aberta. Em uma única classe fizemos esses alunos economizar, com esse livro gratuito, até hoje, US$ 1,5 milhão no total. E, lembre, quem vai à faculdade comunitária é principalmente o aluno pobre. Muitos trabalham. O “aluno padrão” é: mulher, 28 anos, solteira, com um filho. Essas mulheres puderam usar as economias para comprar mais leite para os filhos, pagar aluguel, ônibus e outras despesas.

O que os professores dizem sobre a iniciativa?
Plotkin – Depois que começamos o programa na faculdade do Vale do Silício, tínhamos reuniões de Conselho a cada duas semanas, e a comunicação era aberta, qualquer pessoa podia ir à reunião. A pessoa tinha cinco minutos para falar o que quisesse, mas tinha de esperar até o final da reunião para fazer seus comentários. Em uma noite, tivemos uma reunião muito longa. Havia um homem esperando para falar. Ele esperou, esperou, já passava da meia-noite, mas ele ficou lá pacientemente. Finalmente, chegou a vez dele e ele disse: “Queria agradecê-los por aprovar a política de recursos educacionais abertos e tornar possível que eu ofereça esses livros gratuitos aos meus alunos, porque o impacto tem sido muito importante. Meus alunos confiam mais em mim, estão indo melhor na aula e minha aula é uma experiência melhor para os alunos e para mim, porque eles sabem que reuni os materiais da melhor qualidade com o menor custo possível para eles. Trabalhei um pouco mais, mas isso está fazendo com que eles economizem dinheiro. Eles sabem que estou comprometido com o sucesso deles e estão se esforçando mais na aula. Menos alunos estão desistindo, e aqueles que ficam na aula tiram notas maiores”. Ele encerrou sua fala assim: “Eu só vim aqui agradecer”. E foi embora. Esse foi um momento que nunca vou esquecer. Um encorajamento para continuar a trabalhar

Existe pressão contrária à política de REA? Como reagem as editoras de livros didáticos?
Plotkin – Uma democracia é responsável por proteger o interesse público, não o interesse privado. E digo às pessoas: eu trabalho para o presidente Obama e o secretário Duncan, no Departamento de Educação dos EUA. Não é o “Departamento de Edição”. Se o governo quisesse ter um departamento para edições comerciais, teria. Mas não tem. Temos um Departamento de Educação e nossa missão é ajudar o maior número de pessoas a ter a melhor educação pelo menor custo possível. Os editores têm outros interesses. O trabalho deles é ganhar dinheiro. Tudo bem, somos um país livre e eles têm direito de tentar ganhar dinheiro. Mas garantir que eles ganhem dinheiro não é trabalho nosso. Modelos de negócios vêm e vão com o tempo. Houve uma época em que se andava a cavalo. Aí vieram os carros. Os carros não foram bons para quem estava no negócio de cavalos. Lamento. Deveríamos não ter automóveis porque foi ruim para o negócio de cavalos? Então, claro, aqui nos EUA as editoras têm influência, têm muito dinheiro e podem tentar atrapalhar o processo político. E elas tentam, e têm direito de tentar. Mas outras pessoas também têm direito de defender o interesse público e, em uma democracia, temos regras para debater esses problemas de forma pacífica, não atiramos uns nos outros – bom, geralmente não. No fim, o povo deci­de por meio de quem elege, de quem apoia. Sempre que fui criticado e interesses especiais tentaram intervir para me parar, mas o secretário me apoiou totalmente. Lembro de uma reunião em que alguém perguntou ao secretário se deveríamos ficar preocupados em fazer esses interesses comerciais poderosos ficarem bravos com a gente. Ele quase não esperou terminar a pergunta e já disse: “Vocês têm uma responsabilidade comigo, que é tomar a melhor decisão possível para os alunos. E se isso criar problemas políticos, deixem que eu me preocupo com isso”. Esse tipo de apoio é que torna o progresso possível.

Já existem programas ou projetos para escolas de ensino fundamental ou médio?
Plotkin – Começamos com ensino superior porque tínhamos um fluxo de fundos para isso. Agora estamos incentivando esforços voluntários nos estados. Temos 50 estados e cada um controla seu próprio Sistema K-12 (Ensino Básico). Recentemente os estados concordaram com um currículo comum, que chamamos de “centro comum”. Antes, cada estado tinha o seu. Se você mudava de um estado para outro, seus filhos ficavam perdidos. Na terceira série estudavam coisas que no outro estado estudavam na segunda. Quase todos os estados concordaram com uma estrutura curricular comum e agora muitos estão trabalhando juntos, inclusive com Creative Commons, para criar Recursos Educacionais Abertos. Algumas parcerias com empresas e organizações sociais nos ajudam a identificar quais recursos já existem e servem para o currículo em vários níveis, o que ajuda os professores e os distritos escolares a encontrar materiais abertos.

Mas cada estado pode escolher, adaptar e imprimir o que quiser?
Plotkin – Sim. É um sistema descentralizado. E geralmente cada estado toma sua decisão. Cria-se uma lista de livros didáticos indicados, que inclui REA. A escola pode escolher a partir dessa lista: “Ah, posso comprar 5 mil desses por US$ 12 cada, ou posso comprar 5 mil desses que estão abertos na internet por US$ 4 cada, ou, ainda, posso decidir imprimir eu mesmo por US$ 2 cada”. Essa decisão é da escola. Com o dinheiro economizado, pode pagar mais aos professores, dar mais benefícios…

No Brasil ainda prevalece a ideia de entregar os livros prontos para os professores, sem envolvê-los no processo de produção. Como mudar essa visão?
Plotkin – Uma professora de Stanford, Linda Darling-Hammond, fez uma pesquisa alguns anos atrás, olhando para os testes internacionais do Pisa, em que três ou quatro sistemas educacionais ficam sempre, todo ano, no topo ou próximo do topo. Tenho de dizer que o Brasil não está na lista, nem os EUA. Ela queria descobrir o que esses sistemas fazem para conseguir sempre os melhores resultados. Trouxe os líderes desses sistemas educacionais para um seminário. Cada um falou sobre o que estava fazendo e, quando chegou a vez de a quarta pessoa falar, eu sabia, todo mundo sabia, o que ela ia dizer… porque os três palestrantes anteriores tinham dito basicamente a mesma coisa. Os países tinham chegado aos mesmos métodos, estavam tendo bons resultados de forma independente, mas tinham algo em comum: em todos os professores estavam muito envolvidos na criação e na melhoria do currículo e dos testes. E em nenhum os professores usavam um livro didático que alguém tinha jogado na cabeça deles de um helicóptero.

Por que isso é ainda tão difícil de explicar à maioria das pessoas?
Plotkin – Um dia, no banho, encontrei a melhor maneira de explicar, e essa explicação funciona muito bem com pessoas que não acompanham os resultados de testes acadêmicos. Tem a ver com comida. Eu gosto de comer, de cozinhar, e sei que os brasileiros gostam de comida. Adorei a comida quando visitei o Brasil. Então, essa é a analogia: você ia querer ir a um restaurante, no Brasil, ou onde fosse, onde a comida fosse feita em outro lugar e requentada antes de ser servida? Ou ia mandar seu filho para uma faculdade de gastronomia onde ele fosse ensinado a esquentar a comida que outra pessoa preparou? É claro que não. Você quer comida fresca. Você quer o chef na cozinha, usando ingredientes frescos. Bom, pesquisas mostram que é igual para a sala de aula. Quando um professor se envolve como um cozinheiro, criando o material, melhorando o material, selecionando o material, trabalhando com o material em to­das as fronteiras, culturas, disciplinas e idades, o desempenho dos alunos melhora. Eles sabem que aquele professor está mais envolvido e tomou as decisões, escolheu aqueles materiais especialmente para eles. E os alunos respondem, vão melhor.

Qual foi seu principal aprendizado depois de cinco anos trabalhando com REA no governo?
Plotkin – Quando comecei a divulgar a ideia de REA, há quinze anos, eu pensava em economizar dinheiro dos estudantes. Nunca imaginei que, enquanto fazíamos com que eles economizassem dinheiro, também teríamos resultados melhores. Que não apenas o material gratuito era mais barato, de graça, mas que o benefício real era maior. Os alunos estão aprendendo melhor, estudando mais, estão ficando mais tempo nos estudos, os professores que usam estão mais felizes, relatam mais satisfação no emprego, estão se tornando acadêmicos… Isso é algo que eu não previ, eu estava só tentando economizar o dinheiro dos alunos pobres. Não imaginei que o que estávamos fazendo também ia melhorar dramaticamente a qualidade da educação. Por isso, quando alguém me pergunta: “REA é algo tão bom quanto livros comerciais?” Eu respondo: “Não. É muito melhor”.

Prioridade em alguns estados dos EUA *

No estado da Califórnia, as compras públicas de livros já dão prioridade a recursos abertos. O governo estimou que a adoção de materiais abertos no modelo REA, das áreas de ciência e matemática, para os quase 2 milhões de estudantes do ensino médio (high school), já significa uma economia de 400 milhões de dólares. Movimentos semelhantes estão acontecendo em estados como Utah, Ohio e Flórida. Neste último, o poder legislativo estadual encomendou uma série de estudos sobre o preço de acesso a livros didáticos e qual o impacto na diminuição de barreiras econômicas à educação com a adoção de livros didáticos abertos, os chamados open source texbooks. Pode-se dizer também que o estado de Washington avançou de forma consistente ao decidir desenvolver e publicar na internet gratuitamente, e em formato aberto, todo o seu material curricular, por meio do projeto Biblioteca de Cursos Aberta (Open Course Library).

Até o momento, 42 cursos foram desenvolvidos e oferecidos, já sendo adotados como referência em outros lugares do mundo. O projeto inclui livros didáticos abertos e impressos aos estudantes por não mais que 30 dólares – uma economia de mais de mil dólares por estudante, por ano, naquele estado. Todos os cursos e livros da Open Course Library estão disponíveis sob licença CC-BY – a mais flexível das licenças do Creative Commons. Além dessa iniciativa, o poder legislativo do estado de Washington aprovou projeto de lei OER K-12 Bill, oficialmente chamado de HB2.327, na Câmara Legislativa Estadual, que determina que as escolas públicas adotem recursos educacionais abertos, além de apoiá-las na criação, uso e aperfeiçoamento de cursos abertos. Esse projeto de lei já está no Senado estadual, tendo sido aprovado sua comissão fiscal em fevereiro de 2012.

Em Utah, o estado decidiu incentivar a produção e adoção de livros didáticos com licenças livres, reduzindo o custo da unidade de 80 dólares para 5 dólares por livro, por aluno, para as áreas de matemática, ciência, línguas e artes. Na África do Sul, o governo adotou oficialmente livros didáticos abertos produzidos pelo projeto Siyavula, que possibilitou que o governo distribuísse mais de 2,4 milhões de livros abertos a um preço nominal relativo ao custo de impressão.

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