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Uma rede de articulação ampla e plural, da qual participam mais de 200 grupos e organizações, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação trabalha desde 1999 para garantir educação pública, gratuita, laica e de qualidade para todos. Agora, em 2015, após a aprovação do novo Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024), continua mobilizando a sociedade no segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, que tem como lema nada menos do que “Pátria Educadora”. Daniel Cara, coordenador geral da Campanha, critica o primeiro ano de implementação do PNE, mas aponta avanços na luta pelo direito à educação, como o piso salarial para os professores. E aponta alternativas para garantir os R$ 37 bilhões anuais necessários para universalizar a educação no país.

O que é a Campanha Nacional pelo Direito à Educação?
Daniel Cara – A Campanha é uma rede dedicada a colaborar com a universalização da educação pública, de qualidade, gratuita e laica no Brasil. Hoje temos 24 comitês regionais, espalhados pelos estados, e 200 organizações distribuídas pelo país. É considerada a mais ampla e capilarizada organização em defesa do direito à educação.

A campanha tem relação com algum partido político?
Daniel – Não temos filiação partidária (rindo). No Congresso Nacional, trabalhamos com todos os partidos, dos mais à direita do espectro político até os mais à esquerda, passando por todo o centro. Temos e mantemos diálogo com todos os parlamentares que aderem à pauta. Nos pautamos por princípios. E não flexibilizamos princípios.

Quais são os princípios da Campanha?
Daniel – Entendemos que para chegar a uma educação, pública, gratuita, laica e de qualidade, precisamos de valorização dos profissionais da educação. Isso inclui formação inicial e continuada de qualidade, remuneração digna, plano de cargos e salários, processos de seleção públicos e transparentes. Também temos como foco a gestão democrática do sistema educacional, em escolas públicas e privadas. Somos fortes defensores de um financiamento adequado para a educação. Dentro da esfera da gestão, agora entramos em avaliação participativa. Uma das principais bandeiras do movimento era pela destinação de 10% do PIB para a educação.

Com a aprovação do PNE sem vetos, contemplando essa demanda, a questão do financiamento está resolvida?
Daniel – A questão dos 10% do PIB é um cálculo, uma nota técnica que desenvolvemos e amplamente reconhecida, inclusive pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Nosso trabalho em relação ao Plano Nacional de Educação tem essa força porque é calcado no padrão Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi). Trabalha com a perspectiva de que toda escola pública deve ter educação com padrão de qualidade referenciado em insumo. Isso significa professor com mínimo de formação de magistério e remuneração do mínimo do magistério, assim como todos os demais profissionais; todo o magistério com formação continuada e número adequado de alunos por sala. Além disso, todas as escolas devem ter internet banda larga, quadra poliesportiva coberta, laboratório de ciência, laboratório de informática e, para educação infantil e ensino fundamental, é preciso garantir um elemento central, a brinquedoteca.

Considerando esses critérios de qualidade, como estão as escolas brasileiras?
Daniel – Hoje, das escolas públicas, só 0,6% cumprem todos esses requisitos. No plano Nacional de Educação, temos oito anos para gerar cobertura adequada para os 99,4% restantes.

Qual o custo disso?
Daniel – Por ano, na primeira fase de implementação do PNE, estão previstos investimentos de cerca de R$ 37 bilhões, que o governo federal deve transferir para estados e municípios. É um valor relativamente importante, especialmente em contexto de crise. Mas precisamos lembrar que o Estado arrecada R$ 2 trilhões por ano e faz pouco na área de educação.

Como garantir essa verba para a implementação do PNE?
Daniel – Há quatro formas de fazer isso. Pode ser feito dentro do próprio orçamento, com aumento de destinação. Hoje, menos de 4% do total arrecadado, menos de 18% dos impostos, vai para a educação. Outro caminho seria regulamentar novos tributos sobre patrimônio, renda e tributação financeira, regulamentar os impostos sobre grandes fortunas. O terceiro caminho é acelerar a lei de destinação dos recursos petrolíferos para a educação. Essa via hoje está mais distante por conta da crise na Petrobras, mas há caminhos de garantir recursos, como acelerar a exploração, fazer novos leilões. Aumentar a atratividade da área de petróleo para gerar novos recursos. Mas isso precisa ser trabalhado de forma pública e não para beneficiar empresas privadas. E agora surgiu uma quarta possibilidade, que é fazer cobrança sobre os sonegadores internacionais, que deixam de declarar. Isso geraria uma receita imediata de R$ 50 bilhões e de R$ 20 bilhões por ano, próximo do que precisamos para o PNE.

Como está a implementação do Plano Nacional de Educação até agora. Já foi um ano, né?
Daniel – O PNE é uma demanda do artigo 214 da Constituição que estabelece que o governo precisa aprovar uma lei, a cada dez anos, que oriente a educação nos planos estaduais e municipais. O último plano aprovado é para 2014 a 2024. É composto de 19 metas educacionais e uma meta de financiamento (http://pne.mec.gov.br/images/pdf/pne_conhecendo_20_metas.pdf). As metas são de expansão de acesso, mas também de qualidade. Foi uma vitória ter metas de expansão do acessos acompanhada de qualidade, graças ao trabalho da sociedade civil. Nós conseguimos pautar isso no PNE como prioridade.

As metas estão sendo cumpridas?
Daniel – Das nove que venciam no primeiro ano, nenhuma foi cumprida integralmente.

Então nada ou bem pouco foi feito?
Daniel – Nós temos tido vitórias importantes na área. Nos últimos anos, o Brasil passou por mudanças enormes. Posso citar a aprovação da lei do Fundeb (http://www.fnde.gov.br/financiamento/fundeb/fundeb-apresentacao) – antes só tínhamos o Fundef. E isso se deu por pressão da sociedade civil. Tivemos a Emenda Constitucional 59, que ampliou a educação básica obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos. O piso no magistério para os professores também pode ser citado, além do próprio próprio PNE, e a lei do pré-sal que vinculou royalties do petróleo à educação. Estão acontecendo vitórias com a comunidade educacional.

Pode-se dizer que a educação é central para o governo hoje? Como você vê isso de a educação ser apontada por praticamente todos os brasileiros como a solução para os problemas sociais, ao mesmo tempo em que há ainda dificuldade para investir de fato?
Daniel – Ainda temos pouco para dizer que a educação é uma prioridade. Garantir os 10% do PIB para a educação exige mobilização social muito maior do que praticamos até agora, mas o Brasil tem tratado a educação como algo importante, sim. O próprio lema “Pátria Educadora” nasce porque vários atores políticos colocaram educação como prioridade. Em que pese que nem todos estão mobilizados, conseguiram colocar a educação no centro da agenda pública. No entanto, executar é uma tarefa muito mais difícil. Dá para dizer que neste primeiro ano do PNE houve avanços, embora poucos.

Quais as principais problemas e deficiências?
Daniel – Nada foi implementado de alfabetização de adultos, por exemplo. Hoje 93,5% da população está alfabetizada, mas estamos há quase sete anos sem sair do lugar. É um problema grave a ser resolvido. Tampouco cumprimos a política de formação dos profissionais da educação, algo para além do magistério. Nos países que avançaram na educação é regra: todos os profissionais devem ser tratados como educadores, inclusive a merendeira, o porteiro. Fora isso, o governo não lançou linha de base para dizer onde o Brasil está em cada um dos pontos, não estabeleceu uma comissão para acompanhar. Depois que criticamos, até lançaram, mas sem qualquer diálogo com a sociedade civil.

Então, apesar do lema, a educação não é uma prioridade como se imaginaria?
Daniel – Digamos que ainda é uma prioridade discursiva. Para ser efetiva, deve estar no discurso de maneira correta, para começar. Por exemplo, a Dilma só mencionou o PNE duas vezes. Pouco pronuncia e com menos propriedade do que deveria para uma prioridade. O segundo aspecto é o orçamentário. Ainda não é adequado, faltam recursos. Outra coisa é o quanto a educação dialoga com outras áreas do governo, quanto o governo demanda das outras áreas, como a saúde e a segurança, pública que podem colaborar com a educação. Por exemplo: escolas localizadas em bolsões de violência é uma situação que quase impede a educação. Precisamos garantir paz no momento do aprendizado. Outra: o cadastro do bolsa família poderia ajudar, inclusive para alfabetizar pessoas adultas. Existem muitos jovens analfabetos. A intersetorialidade da política comprovaria a prioridade. Eu estou falando da esfera federal, mas poderia falar o mesmo de estados e municípios onde encontramos os mesmos problemas.

Qual a resposta do governo diante das críticas quanto à execução do primeiro ano do PNE?
Daniel – Ficou claro para todos que não houve cumprimento. Conseguimos falar com o Renato Janine Ribeiro [novo ministro da Educação], ele foi alertado de que não pode se contentar com o que o governo dá, precisa de atitude divergente. Disputar por verbas, pelo orçamento.

Para fechar, vamos falar de tecnologia. A Campanha coloca a necessidade de banda larga nas escolas. Por que?
Daniel – As tecnologias são fundamentais para suporte ao ensino. O que considero equivocado é a confusão da tecnologia como parte do método ou como o próprio método pedagógico. A tecnologia é neutra, pode servir para todos os senhores. Mas não dá para deixar de usar tecnologia. Isso precisa ficar claro para todos. A internet é bem pouco utilizada nas escolas. O Uruguai tomou uma decisão firme e todas as escolas lá têm acesso à rede. Aí, se vai usar da maneira adequada ou não no início, não importa. A banda larga é um direito para as comunidades. A banda larga serve inclusive para o professor ser mais autor de seu processo de ensino. Fortalece muito o processo de ensino. Pode ser por laptop, tablet e cada professor terá um percurso de ensino. Só não creio no discurso de que tudo está resolvido com a internet, com rede social. Tem gente que diz que as crianças não precisam de escola, bastam os vídeos da Khan Academy. Eu assisti a todos os vídeos de matemática e posso dizer que não são suficientes. Não existe autodidatismo sem base para que o autodidatismo se realize.

A internet é importante mas não resolve todas as demandas.
Daniel – O professor autor é o melhor professor que podemos querer, aquele que escolhe conteúdos para os alunos, constrói narrativas… e o mundo da internet é vasto, um terreno fértil para a construção de narrativas novas. Mas claro que a internet, por si só, não é capaz de educar.