Luciano Meira
Pedagogo, Ph.D. em educação matemática, professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e pesquisador associado da JoyStreet.
ARede – Com o apoio da tecnologia, a educação está se renovando?
Luciano Meira – Os dois últimos anos foram especialmente reveladores do desejo dos investidores de olhar para a inovação em educação. E inovação quase necessariamente traz no seu lastro algum tipo de desenvolvimento tecnológico. Nunca se investiu tanto. Desde investidores da própria área até os que não são particularmente da área de educação e que começaram a ser. Ou seja, o mundo das start ups da inovação tecnológica para a educação se apresenta como uma possibilidade importante. Você até pode considerar que educação virou fashion para investimento. Chegou a hora de pensar educação como um campo fértil em inovação.
ARede – Aumentou a demanda por novas tecnologias para educação?
Luciano Meira – A demanda sempre existiu. O que está se vendo agora é a possibilidade de o risco da inovação resolver algumas dessas demandas, que são históricas: melhoria de qualidade, melhoria de acesso, formação mais acentuada de professores. Os investidores estão arriscando inventar métodos, processos, serviços e artefatos que podem finalmente responder a essas demandas seculares.
ARede – Eles estão apostando no caminho certo?
Luciano Meira – O caminho certo para inovar é arriscar, ter esse tempo de oportunidade e colocar recursos nisso. Desde o investidor anjo até o venture capitalist, que têm grana de risco para botar nesse negócio. Nesse sentido, sim, estão no caminho certo.
ARede – O que tem sido desenvolvido? A inovação que existe hoje atende as necessidades emergentes?
Luciano Meira – Uma parcela considerável desses investidores está se associando a pessoas que têm soluções potencialmente inovadoras para educação – e eu não tô falando de experimento inovador em uma escola, ou em um conjunto pequeno de escolas. Estou falando de coisas que podem mudar de verdade a forma como a escola funciona. No mundo inteiro, vemos essas associações que vão desde grandes nomes, como Sugata Mitra, na Índia (ele tem investidores de risco por trás), até gente pequena, como eu (rs!)
ARede – Os educadores têm participado dessa inovação? Ou as start ups do setor têm só engenheiros, cientistas da computação?
Luciano Meira – A maioria das empresas que eu conheço no Brasil tem, sim, associação com educadores. Mas muitas em regime de consultoria, em vez de regime de residência, em que o cara fica dentro da empresa. A gente aqui na Joy Street tem uma meta estratégica. Temos um time de educação colado em um time de design e em outro, de negócios. São educadores, pedagogos que a gente forma para ter um olhar de inovação. Porque se for o pedagogo mais tradicionalista, ele vai ser um obstaculizador das possibilidades da inovação. Se for um consultor de uma universidade federal, quase certamente vamos ter problemas… (rs!) Hoje ainda há uma sociologia da educação que não tem a pragmática dos meninos que estão recebendo os tablets nas escolas.
Daí a ideia de um time de educadores residentes, que respiram a cultura de inovação. Uma coisa fundamental sobre inovar pedagogicamente a escola é que não só os pedagogos o farão. Não eles sozinhos… A educação é um problema muito complexo pra ter uma visão fatiada. Por isso fazem sentido os investimentos que têm multiplicidade de olhares, a partir de design, tecnologia, educação e negócios.
ARede – Já existe uma nova geração dos professores, menos resistentes à tecnologia?
Luciano Meira – Primeiro, uma pesquisa da Associação Brasileira de Tecnologia Educacional mostra que não há correlação entre a idade do professor e a capacidade dele de usar novas tecnologias na sala de aula. Pode haver uma nova geração, mas não é estritamente determinada pela idade do sujeito. Depois, eu não acho que existe resistência na intensidade que muitas vezes se coloca. É inegável que muitos professores têm, mas essa resistência tem a ver com a falta de adequação dos artefatos e processos hoje disponíveis para o trabalho que o professor realiza.
ARede – O que significa essa falta de adequação dos equipamentos?
Luciano Meira – Vamos pegar um smartphone qualquer. Por mais bacana que seja, o que tem nesse artefato que salta aos olhos como algo educacional, que promove a aprendizagem? Nada. Porque o celular não foi desenhado pra isso. Foi desenhado para a circulação do cidadão na cidade, para a comunicação.
ARede – E os UCAs? Os netbooks educacionais foram desenhados pra educação.
Luciano Meira – Discordo de você. Esses equipamentos foram “pensados”, mas não “desenhados” para educação. As pessoas que produziram não estudaram suficientemente o cotidiano da escola, as formas de aprendizagem. O que falta nessas coisas é design. É você entender o processo de aprendizagem: primeiro é assim, de manhã faz assim… etc. Do mesmo jeito que os designers estudam a experiência de uso quando vão projetar um objeto qualquer. E isso não tem sido feito com consistência, do ponto de vista da educação. No UCA a gente viu as mesmas salas, organizadas do mesmo jeito, com computadorzinhos em cima das mesas. Isso não é inovação.
Essa teoria foi pensada em um centro de educação de professores que só tem 10% de sua força criativa voltada à sala de aula. Então, 90% daquele negócio ali é abstrato, não vai funcionar na sala de aula. Falta observação relevante, por pessoas que saibam observar… designes, educadores, no sentido de criação de coisas mais funcionalidades educacionais. Tem que ter em mente que a missão da escola não é mais ensinar, é criar ambientes de aprendizagem. Se for pra ensinar, eu invento um megafone melhor, com som mais alto, pra entrar melhor na cabeça dos meninos.
ARede – Os centros de educação a que você se refere são as universidades?
Luciano Meira – Sim, são os centros de educação de onde esse pessoal tá saindo, com 24 anos de idade. Que são os mesmos que formaram o cara que saiu há 50 anos. A universidade tem de ser envolvida nesse assunto de inovação do ensino básico. Em 2010, a pesquisadora Bernadete Gatti, da Fundação Carlos Chagas, fez uma análise de ementas de cursos de formação de professores. Comprou com dados de observações in loco em todos esses locais. O trabalho concluiu que menos de 10% dos currículos tinha relação com a pragmática da sala de aula. O resto era tudo filosofia, história e sociologia da educação.
ARede – A inovação vai exigir rever estruturas, currículos, metas, formas de avaliação. Como se muda isso?
Luciano Meira – Lentamente.
ARede – E nós já começamos?
Luciano Meira – Sim. Já existe uma discussão, que eu espero que se encerre até o final deste ano, de um currículo nacional unificado. Junto com uma matriz que faz sentido, como a matriz de competências do Enem, esse currículo daria a toda a educação básica uma unidade, a partir da qual você pode obter diferenciações com práticas inovadoras. Hoje é uma esculhambação tão grande que as inovações viram só experimentos-piloto. Como você não sabe exatamente onde tá pisando, qualquer coisa vai. E a gente acaba sem diferenciar o que de fato pode melhorar a qualidade da educação e o que simplesmente tá diferenciando uma escola da outra. Inovação não é só produção de mudança. É gerar uma mudança que introduza um valor singular e sustentável ao longo do tempo. Além disso, na medida em que a gente pode articular um currículo melhor organizado, com metas um pouquinho mais organizadas, em torno, por exemplo, de um conjunto de competências aceitas mais ou menos uniformemente, a gente pode começar a avaliar o impacto da inovação.
Além do currículo unificado, há outras políticas públicas que favoreçam a inovação na educação?
A ampliação do acesso. Hoje, as pesquisas mostram que cerca de 70 % das escolas do país têm alguma forma de acesso sem-fio, mesmo que seja com velocidade de 2 Mbps, que basta dez meninos se plugarem e já fica muito ruim…! Mas eu confio que o bring your own device na escola talvez tenha mais efeito. É deixar o menino trazer seu próprio equipamento e usar o plano de dados de 25 centavos por dia. Um conjunto enorme de jovens já tem acesso nas escolas por meio de aparelhos móveis. Agora faltam – e aí é o círculo vicioso que a gente tá falando – práticas didáticas inovadoras que ponham esse negócio para um uso decente.
ARede – Faltam conteúdos didáticos digitais?
Luciano Meira – Não. Hoje conteúdo não é problema. A quantidade de conteúdos digitais é enorme. A gente não sabe é utilizá-los. A questão é mais a organização dos conteúdos, é criar experiências em torno de um currículo que faça sentido. Por exemplo: a gente incentiva os jovens a usar a Wikipedia e como a gente não tem a experiência de usar aquilo lá, o que eles vão fazer é uma cópia do conteúdo, exatamente como se fazia com a Barsa. Então, você não fez nada, só trocou a mídia. Se a inovação não promover a emergência de um valor sustentável para a mudança de um comportamento de um grupo, então é só produzir mudança. E mudança não é nada. Até o tempo pode produzir mudança. Se você deixar o tempo correr, você vai ter mudança. Mas não é mudança apenas que a gente quer. A gente quer mudança com inovação.
ARede – Gameficação, robótica… são tendências da inovação educacional?
Luciano Meira – Podemos dizer que sim. É o desejo de uma sociedade de inserir na escola coisas que as crianças vêm em todo lugar, que têm a ver com a realidade delas. A gente aqui em Pernambuco tem a Olimpíada de Jogos Digitais e Educação (OJE). Que também implementamos na rede estadual do Acre e na rede municipal de Aracaju (SE). É uma plataforma de aprendizagem online, desenvolvida pela Joy Street, na qual a gente promove torneios baseados na gameficação da aprendizagem. O impacto é muito interessante, do ponto de vista de provocar o engajamento de alunos e professores em gincanas de aprendizagem, em que eles têm que realizar pesquisas, estabelecer diálogos e realizar um conjunto de ações, no formato de jogo, para a conquista de objetivos de aprendizagem.
ARede – Qual a diferença entre olimpíada de aprendizagem e olimpíada de conhecimento?
Luciano Meira – A Olimpíada Brasileira de Matemática, por exemplo, é uma das maiores olimpíadas de conhecimento do mundo. Por que eu chamo de conhecimento? Porque você inscreve 20 milhões de alunos e o que eles fazem são provas. Na primeira prova você já reprova 19 milhões, 950 mil inscritos. Que vão pra casa. É claro que o processo que o professor realiza em cada escola até eles chegarem nessa primeira prova tem um valor bastante grande. Mas a olimpíada em si não faz mais nada com essas crianças e jovens se eles não passam pra segunda etapa.
Diferentemente dessas olimpíadas de conhecimento, a gente criou um mecanismo, usando técnicas de jogos e de aprendizagem, que faz com que o menino se engaje ao longo do ano no conjunto de torneios, baseados em desafios. O sistema exige que ele esteja sempre pesquisando, falando com o professor, desenvolvendo estratégias sociais para participar de uma equipe. Todos os conteúdos são desenhados a partir da matriz de competências do Enem ou da Prova Brasil, no caso do município.
E a gente desenhou um negócio de forma que o aluno é que convida o professor a participar, a validar a equipe dele. A gente tem vários depoimentos de professores dizendo: foi a primeira vez que um aluno me chamou pra fazer alguma coisa. É esse tipo de pequena ação que reconfigura o arranjo social da escola, passando de uma caracterização mais monológica, com o professor sitiado de sua autoria, para o professor num arranjo social mais dialógico, onde ele consegue, por exemplo, ser convidado por um aluno. Às vezes inovação é uma coisa simples assim. Mas todas precisam de um design estratégico.
ARede – Governos e prefeituras estão comprando tecnologia para as redes de ensino. Estão levando em conta essa perspectiva de inovação?
Luciano Meira – Eu vejo muitas prefeituras contratando tudo que é de robótica sem saber absolutamente o que se quer com aquilo. Todo fundamento da minha pedagogia é baseado na ludicidade. Foi o que eu estudei a vida inteira. Mas ludicidade não é botar brinquedo na mão dos meninos. É criar um ambiente de engajamento, de imersão experiencial que gere uma espécie de prazer desejante em relação ao conhecimento. Se você não tem isso, o que você vai fazer é encantar alguns meninos que vão seguir carreira. Essa não é a função da escola. E se for só pra brincar, é muito mais barato ter um tanque de areia, né?