AO LONGO de 2014, 2,5 milhões de brasileiros fizeram cursos a distância, de acordo com dados da Associação Brasileira de Ensino a Distância (Abed). Nesse mesmo ano, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep), os estudantes online representavam 15% das matrículas de graduação em todo o país. Todas as pesquisas e estatísticas referentes a Ensino a Distância (EAD) no Brasil, feitas por organizações governamentais ou não governamentais, apontam uma tendência inquestionável: o uso cada vez mais intenso da internet para formação, nos diversos níveis e modalidades.
Problemas antigos – como analfabetismo digital, falta de acesso, preconceito – estão sendo vencidos. Agora, o momento é de dar consistência às práticas educacionais, impulsionar políticas públicas e consolidar o ensino a distância como meio para democratizar a educação. Essa avaliação foi feita por um dos maiores conhecedores do assunto, pioneiro no segmento e responsável pelo ensino online de uma das mais respeitáveis instituições de ensino superior do país: Stavros Xanthopoylos. Nesta entrevista, ele traça um panorama dos benefícios e dos entraves da modalidade de ensino que mais cresce no mundo.
O EAD, no Brasil, começou como iniciativa para fortalecer a formação de professores e cresceu exponencialmente para cursos de graduação, técnicos e corporativos. Qual é a aplicação mais indicada para o ensino a distância, hoje?
Stavros – Se eu tivesse que priorizar uma frente, seria a formação de professores. Principalmente nas áreas de ciências, matemática, onde ha maior carência. Já existe muito conteúdo didático gratuito, na rede, para isso. Mas seria preciso fazer manuais de uso, dando uma roupagem pedagógica adequada para que os docentes pudessem realmente se qualificar. Hoje, a gente ouve falar de uma terceirização das responsabilidades institucionais. Falam que o papel do professor mudou. Ele agora é um mediador; o protagonista é o aluno. Com todo o respeito, eu não consigo conceber uma frase dessa. O protagonista continua sendo o professor; o protagonista continua sendo o aluno. Cada qual dentro da sua função. O que é preciso entender é que com EAD o professor vai aprimorar o próprio alfabetismo digital, que é necessário, e além disso terá de incorporar a transmissão de valores – como o professor sempre passa –, só que são valores de uma cidadania nova: a cidadania digital.
A Abed contabilizou cerca de 1 milhão de matrículas EAD, em 2014, do fundamental à pós-graduação. É quase o dobro em relação a 2013 e quase nove vezes mais do que cinco anos atrás. como está a oferta e a demanda de ensino online no brasil? em que áreas mais avançou?
Stavros – A alavancagem maior foi nas graduações. Tanto a graduação tecnológica quanto a graduação plena, nos últimos dez anos, foram responsáveis por quase dobrar o número de matrículas EAD. O último Censo do Ministério da Educação (MEC) mostra mais ou menos 1/3 das matrículas em ensino superior para cursos online. Mas também surgem muitos cursos on-line livres, principalmente corporativos. Além disso, o ensino a distância é uma oportunidade para ampliar o ensino técnico. O Censo Abed indica que 41,8% dos cursos ofertados são de caráter profissionalizante, formações técnicas.
Mas EAD funciona para aprender conteúdos práticos, mão na massa?
Stavros – Um exemplo concreto: eu quero treinar alguém em soldagem, uma atividade de alto risco, perigosíssima. A pessoa tem de ter os padrões de segurança em primeiro, segundo e terceiro lugar. Com os recursos digitais, podemos simular a manipulação da solda com fidelidade às características do ambiente real. Um soldador pode se preparar em um laboratório virtual sem se queimar, sem sofrer um acidente grave que pode comprometer até mesmo sua carreira profissional, sem desperdiçar material. Aí, depois que ele fizer essa etapa, a um custo super baixo, então ele vai para a atividade na prática. O que eu quero dizer com isso é que EAD não tem de ser 100% virtual.
Há uma medida recomendável da proporção de atividades virtuais e presenciais?
Stavros – Não tem receita. O importante é o processo de curadoria. A primeira pergunta a ser respondida é “qual a pedagogia adequada para garantir que a pessoa estará apta a executar tal tarefa?”. Por exemplo: conheço currículos de graduação de biologia que não exigem trabalho de campo. Isso não faz sentido. Em algumas áreas, a proporção entre virtual e presencial vai ser meio a meio; em outras, 30% e 70%. É preciso construir o modelo pedagógico, que vai depender daquilo que a gente quer como resultado da aprendizagem. Essa curadoria é fundamental: o quanto usar a tecnologia em um modelo sustentável para atingir os objetivos.
A lei obriga a ter atividade presencial nem que seja para a avaliação, não é?
Stavros – Sim, hoje é assim. Não que falte tecnologia para suprir essa necessidade. A presença virtual, que poderia simular uma reunião, ainda não é economicamente viável para eliminar a sala de aula. Aliás, isso já existe, aqui no Brasil, com equipamentos chamados de telepresença, que mostram o interlocutor em tamanho real e alta definição, sentado na sua frente. Eu participei de uma dessas sessões e depois de dois minutos de conversa não me ligava mais no fato de que as pessoas não estavam ali em carne e osso. É uma tecnologia mais sofisticada que a da videoconferência. Só que isso tudo ainda é caro. Então, a tendência é surgir ambientes de construção, estudo, desconstrução e discussão do conhecimento, apoiados por um professor ou um tutor. Nesses ambientes se prepararia os alunos para um momento de alto valor agregado, o encontro presencial, diminuindo sensivelmente a necessidade de encontros presenciais.
No início do EAD, a interação no ambiente virtual gerava enorme polêmica. O aluno ou o professor ainda se assustam com isso?
Stavros – O aluno, não. O professor, sim. Porque no presencial puro – e eu falo isso porque sou professor – só Deus e o professor sabem o que está sendo dito dentro da sala. Então, o sistema virtual gera um problemão, pois não tem como esconder a qualidade do seu trabalho quando você prepara uma discussão e fala para os alunos olha, o texto está lançado, vocês têm de estudar tal objeto de aprendizagem, e depois vão fazer um fórum entre vocês, podem fazer perguntas a serem respondidas pelo professor ou pelo tutor, depois vamos fazer um encontro preparatório e no final do processo, fisicamente, na aula, a gente vai dar a cereja do bolo. E como a gente faz isso com qualidade? A educação, hoje, abriga o presencial, o presencial apoiado por tecnologia, o blended, o online tutorado, o online puro. O professor pode “temperar” o seu modelo com isso tudo, da forma que lhe sirva melhor.
Quais são os indicadores de qualidade em um curso online?
Stavros – Para começar, o modelo pedagógico tem de ser sustentável. Eu tenho que ser capaz de usar uma folha de papel e um lápis para construir a pedagogia do negócio. E depois arquitetar a logística para executar esse modelo. Não adianta, por exemplo, sem crítica nenhuma, dizer… nós usamos second life porque o aluno é tímido. Na minha instituição, nós nunca usamos second life. O custo não compensa. É complexo, é surreal em termos de infraestrutura, fora aqueles problemas de vinte anos atrás…o cara fala oi e você não ouve, ouve eco. Eu vi muito dinheiro desperdiçado de universidades públicas; na Austrália, por exemplo, porque o educador achava que com o avatar o aluno perde a timidez. Melhor contratar um psicólogo que sai mais barato.
O curso a distância é melhor quando a instituição oferece a mesma formação no presencial? Há relação entre as duas modalidades?
Stavros – O mínimo que acontece é o virtual contribuir para melhorar a qualidade do conteúdo presencial. Porque um curso presencial requer um coordenador pedagógico e um professor, que trabalham e geram uma grade de materiais. Depois, como eu te disse, o que acontece e na sala é Deus e o camarada. No online, é necessário ter um arquiteto pedagógico que pega o conteúdo, fazer um desenho instrucional, e também envolver web designers, pessoal de solução de recursos e toda a parte técnica. Os atores – além desses que vão transformar o conteúdo para online – pode ser um professor-tutor ou o professor e mais um tutor. Perceba como mudou a característica do que é fazer um curso. O que eu tenho visto é que quando há essa preocupação com o presencial e também se oferta online, o professor do presencial passa a usar os materiais do online.
O que muda, na prática, para o professor?
Stavros – Muita coisa. Mas, com planejamento, tudo se resolve. O online é diferente de uma aula presencial, quando o aluno levanta a mão com uma dúvida e o professor se dá conta de esqueceu de mencionar um detalhe e complementa na hora. No virtual, não se pode esquecer nada ou pode-se esquecer muito menos, pois o aluno não pode ficar no ar diante de uma interface mal feita. Planejamento é palavra-chave. Também é importante ajudar o aluno a desenvolver habilidades de relacionamento, coisa que nem sempre ocorre na aula presencial. É o que a gente chama de soft skills. Para o aluno melhorar suas habilidades de trabalhar em grupo, de ser flexível, de ter domínio das ferramentas. Ele vai ter que ler e escrever muito mais, por isso vai apurar a leitura e a escrita. E tem os componentes de cidadania digital, principalmente no ensino básico, quando você vai construir um novo cidadão. Esse é o papel do professor que a gente falou que não mudou. Ele tem novos valores a transmitir, ensinar o aluno a ter visão sistêmica, a gerir tudo como se fosse um projeto, a ter pensamento crítico. E transformar o aluno em um pesquisador.
Qual o perfil do estudante a distância?
Stavros – No passado recente, era o aluno que queria uma formação continuada e não tinha condições ou mobilidade para frequentar um curso presencial. Normalmente, são mais mulheres que fazem cursos online, até nos gratuitos. A idade tem caído bastante. Em 2007, 2008, era de 35 a 40 anos. Hoje tem gente que opta por sua primeira formação ser online. Até porque ficou mais fácil. Você tem uma facilidade enorme com os padrões, os sistemas dispõem de um uma espinha dorsal onde dá pra pendurar um monte de coisas. O uso de vídeos reduz a necessidade de ter textos elaborados. E, por pior que seja a educação digital do aluno, ele é mais intuitivo, não precisa mais de muita orientação na tela. Em 2003, a FGV criou um personagem que acompanhava a navegação do estudante, tela a tela, mostrando o que fazer. Nas humanas, era um bonequinho do Freud; o Einstein, para as exatas. Esse tipo de coisa, hoje, é maçante. O personagem foi muito reduzido porque mudou o perfil de usabilidade.
De onde vêm os conteúdos? As próprias instituições desenvolvem ou contratam empresas?
Stavros – As duas coisas. Tem gente que monta suas próprias equipes. Aqui na FGV, além de formar nossas equipes, já formamos muita gente para o mercado. Já tive que aumentar salários porque estava perdendo bons funcionários para a concorrência! O problema da terceirização para as fábricas de conteúdo é que podem ter a pirotecnia que for… se não tiver conteúdo, não vai adiantar. O ponto central são aquelas 80, 90 páginas que o autor vai trazer para transformar para o online. O que você não pode é estragar esse conteúdo. Algumas empresas fazem isso muito bem. Outras, nem tanto. Olha o caso de uma empresa supercompetente nas ferramentas, que não tinha conteúdo e queria adicionar valor. O que eles fizeram? Começaram a contratar palestrantes de nome para usar esse conteúdo na tecnologia que eles têm. Como você vê, o tiroteio é para todo lado.
Produzir conteúdo de qualidade é caro e trabalhoso. É por isso que a maioria dos recursos disponíveis são videoaulas?
Stavros – Sem dúvida, é muito caro. O vídeo se intensificou, com certeza. E, de novo, tem que ter preocupação pedagógica. Aí vem a parte de como estruturar a gestão do conteúdo: organizar bem, ter temporalidade, tesauru, organizar de forma a ter um material modular e ganhar escalabilidade. Essa é a vantagem de intensificar o EAD principalmente na área pública. Se eu tivesse que lutar por algo, e eu sei que é algo muito difícil, eu lutaria para que todo conteúdo desenvolvido por instituições tivesse, por lei, padrões claros de REA. Seriam conteúdos com padrão, que cada um pudesse mexer, atualizar, customizar com uma curadoria em torno disso e a parte regional ficaria aberta para que cada um acrescentasse o que quisesse.
Infraestrutura é o maior desafio para a universalização de EAD no Brasil? Dependemos da massificação da banda larga?
Stavros – Não há dúvida de que infraestrutura é fundamental. Se a gente olhar para o governo acabando com os programas, para a falta integração entre os ministérios das Comunicações, da Ciência e Tecnologia e da Educação… Essas pautas hoje estão debaixo do mesmo guarda-chuva. A gente precisa sensibilizar quem dá continuidade ao processo nos governos. Mas, independente dessa discussão, que é política, acho que também falta visão para arquitetar as soluções disponíveis. Nós temos bandas de satélite que não são usadas de madrugada. A banda KU, por exemplo, ninguém usa mais por conta da instabilidade. Mas é viável para mandar conteúdo e criar redes locais independentes, para que haja treinamento, enquanto não se ilumina o país. Não temos internet adequada, nem com velocidade, nem com custo adequados. E não teremos durante um bom tempo! Porque os grandes provedores disputam os mercados desenvolvidos e ganham dinheiro com os mercados em desenvolvimento.
Ensino a distância pode ser uma forma eficaz de universalizar e qualificar o acesso à educação?
Stavros – Esse desafio é enorme e bonito porque representa a oportunidade de democratizar o processo. Porém, se os governos e as instituições de ensino – públicas e privadas, que têm de estabelecer suas estratégias – não colocarem EAD como elemento de visão estratégica, para transformar o ensino a distância em política pública, plano de ação, projeto, dificilmente a gente vai conseguir aproveitar essa oportunidade. Estamos pressionando pela aprovação do Marco Regulatório, em discussão no Conselho Nacional de Educação. Esse marco traz avanços para a expansão do EAD de qualidade
Já houve uma inciativa. A Universidade Aberta do Brasil (UAB), que enfrenta uma crise.
Stavros – A UAB está em crise, e é uma pena. A UAB tentou não cometer os erros das universidades abertas de outros países, que tinham um grande contingente, e poucos se formavam. Tentou atuar na aceleração de formação, principalmente de professores. Mas é preciso esclarecer que a UAB não é uma universidade aberta. Como falar em universidade aberta se existem conteúdos fechados e exame de entrada? O conceito de universidade aberta é quando o cara chega e fala ‘eu quero estudar’, e você fala ‘tá, o que você quer fazer?’. O que nós temos, então, é um consórcio criado para ampliar os cursos de pedagogia e formar professores. Isso não é universidade aberta. O que eu penso é que, enquanto o ensino a distância for o “puxadinho” da instituição pública federal, não tem como ir pra frente. Os professores estão mesmo sem condições de trabalho, sem formação necessária, sem remuneração condizente. Como dizer a um professor ‘agora você também vai ter que trabalhar com tecnologia’? Ele me diz: ‘no meu contrato, tá escrito que eu tenho de fazer isso aqui. Por que eu vou sair do meu quadrado?’ Então, que incentivo o professor tem? Não dá para introduzir o sistema sem fazer adequação da estrutura, para que a mudança seja absorvida como um processo novo.
Um cidadão com banda larga popular consegue fazer um curso online?
Stavros – Sim, consegue. Olha, antes do ano 2000 eu fazia chat via linha discada. Tinha aluno até em Xangai. Quando lancei os cursos gratuitos na FGV, o intuito era alcançar quem não tinha condições de fazer os cursos pagos da fundação. E eram cursos de curta duração, de 8h a 40h, e-learning e sem tutor. Ou seja: campeão, tá aí o conteúdo, se vira! O Brasil inteiro acessava.
E vai até o fim? A evasão em EAD continua alta? O problema é metodologia ou tecnologia?
Stavros – A evasão ainda é alta. Mas o problema não é o aluno, é o que se dá para o aluno. Não existe esse conceito de que o online não educa, educa mais ou menos, a interação não é igual… O networking, inclusive, é mais dinâmico. Uma vez, em uma palestra, um estudante me abordou, com uma angústia de sua experiência de pós em EAD em uma instituição federal. Ele disse que demorava uma semana para receber resposta do professor. Na FGV, o tutor tem 24h para responder uma pergunta. A média de resposta, aqui, é de seis a oito horas. E tem uns muito malucos que respondem instantaneamente. Ou seja, o problema não é o sistema. Provavelmente, no curso daquele rapaz não estava previsto uma semana para respostas, mas ninguém devia acompanhar o tutor para checar. Outro exemplo: cinco anos atrás, uma empresa que tinha presença no Brasil todo queria fazer um curso nosso de especialização. No Norte, havia turmas em que apenas duas pessoas eram aprovadas – a média era 95% de aprovação, não 2 em 40, ou 2 em 50. Verificamos um problema cultural, de adaptação à cultura online. O que a gente fez? Estendemos o prazo dessas turmas, para dar mais tempo aos alunos.
O mercado de trabalho ainda tem resistência à formação a distância?
Stavros – Tem diminuído bastante. Recentemente vi uma pesquisa que mostrava o aluno de EAD com 81% mais formação que o aluno do presencial; e 78 % mais empregabilidade, em algumas áreas. Claro que ainda há resistência, e casos absurdos, como o da Federação Nacional de Serviço Social, que boicota candidatos formados a distância. Mas são exceções. Me diga… quem é o contratante de RH, hoje, usuário de computador, tablet, smartphone, que tem coragem de rejeitar o sujeito que aprendeu usando essas ferramentas? Quem faz isso está fora do mundo! O importante é o que o cara sabe ou onde ele aprendeu? Em países onde a cultura EAD já está implantada, como Canadá, Espanha, Alemanha, o profissional com formação a distância é até mais valorado. Por conta dos soft skills que eu mencionei antes – é um profissional disciplinado, obstinado, que usou a flexibilidade pra se formar, trabalha melhor em grupo etc. Eu diria que o mercado não está “aceitando EAD”. Está aceitando um profissional que demonstra a mesma capacitação, ou às vezes melhor do que outro, que fez um curso presencial.