Já faz algum tempo, quando eu cursava o 3º ano colegial, um professor de português me apelidou de partícula adversativa. Eu vinha de um colégio vocacional, meu querido Colégio Progresso Campineiro, para fazer o último ano numa escola pública estadual. Eu havia aprendido questionar para construir meu entendimento e minha opinião sobre tudo.
Esse professor, que depois viemos a saber que prestava serviços aos órgãos de repressão, lá nos velhos tempos da ditadura militar, foi quem me ajudou a descobrir “minha vocação”: questionar, debater, refletir, AMAR e AGIR.
Pensei muito nisso quando vi o tratamento truculento de policiais com os professores em greve. O que me assusta mais é o aprendizado a que estão sendo submetidos professores e alunos. Já comentei com vocês que acredito que democracia se pratica. Acredito nisso, porque também acredito que só aprendemos vivenciando. Que lição está se ensinando com a truculência que temos visto contra movimentos sociais? Pode um mundo democrático conviver com violência de qualquer tipo? Não seria o caso de nos perguntarmos: e se não for assim?
E, nós, que vamos pras ruas e pras redes, que fazemos greve para defender nossos direitos, estamos nos fazendo entender? Nossos pares na equação Escola Democrática têm podido nos perguntar, conviver com nossas necessidades e direitos, saber e conversar sobre como a Democracia pode contribuir para a vida deles nas escolas, no trabalho, na vida?
Questionar é o primeiro movimento que fazemos para nos posicionar no mundo.
Não podemos nos sentir ameaçados, não podemos confundir debate com intolerância, preconceito.
Não podemos conviver com o conformismo.
Todos os movimentos em que nos engajamos, toda causa que abraçamos, começam assim: e se não for assim?
Foi respondendo a isso que entendi por que devemos defender desmilitarização das polícias. O que não significa enfraquecer, vacilar, perante a ameaça ou obstáculo. Significa, sim, não tratar a população, professores e todos nós como se fossemos inimigos combatentes de uma guerra insana. Significa construir uma política de segurança que reconheça formação social, cidadania e civilidade como ferramentas. Significa proibir armas letais, balas de borracha. Significa entender que prevenção e diálogo combinam mais com cidades seguras, ocupadas e democráticas.
Aprendi, nessa vida de partícula adversativa, que enfrentando nossa perplexidade com atenção ao que queremos desvendar descobrimos todos os traços e texturas para desenhar nossa Democracia.
Bom, um outro assunto que despertou meu instinto de esmiuçar, de não ficar com uma só versão do fato, foi o anunciado provável acordo do governo federal com Facebook, ou melhor dizendo, com a internet.org, fundação do Mark Zuckberg, o “dono”do FB. Muita gente tem perguntado o que isso tem de mal? Por que não, se precisamos de dinheiro para investir, para dar acesso a todos e todas, para fazer inclusão digital em todo país?
Saí por aí perguntando, lendo, e vou simplificar aqui para deixar claro por que não.
Um primeiro problema é que o governo não pode sair assim numa tacada, privilegiando uma empresa e terceirizando políticas públicas. Por que escolher, neste mundão de Deus, o Facebook? Nenhuma outra empresa teria interesse em investir para ter o precioso retorno de ter acesso gratuito a dados e informações sobre usuários de uma nação, que são a matéria-prima de seu lucrativo negócio?
E vamos lá, o que seria o mundo da inclusão digital com o FB? Imagine a internet cheia de cerquinhas. E cada um no seu cercado, naquele que lhe será permitido navegar. E não ouse pular a cerca, sua mente será torrada pela cerca elétrica. Embora não tenhamos todas as informações (e acreditem, entidades atuantes em torno do tema enviaram numerosos requerimentos de informação a órgãos do governo federal para conseguir mais esclarecimentos e até agora não recebemos nenhuma resposta), vamos desenhando o cenário com base em acordos semelhantes na América Latina e no mundo. Você teria acesso ao que está dentro do cercadinho da fazenda Facebook. E o mundo todo se resume ao que o Facebook oferece? Mesmo os mais viciados nessa rede social sabem que não.
Além disso, e se a tecnologia usada for a de espalhar sinal de internet através de drones, como foi em outros países que toparam esse acordo? Esses “robozinhos” voadores que rastreiam o espaço aéreo, espalham sinal mas recolhem dados, muitos dados sobre o território rastreado? Você consegue imaginar o estrago que seria uma empresa estadunidense armazenando e usando dados nossos, do nosso país, para lucrar, vigiar e invadir nossas fronteiras, cercear nossa liberdade?
Temos ainda a oferta de centros de inovação e empreendedorismo, em comunidades de baixa renda. Sim, você poderá ter um espaço para criar, inovar, desde que você tope que o que ali for criado será usado pelo FB ou, se criar para resolver problemas que dotem a plataforma Facebook de maior usabilidade e lucratividade.
Existe algo nesse debate que me causa indignação e muita apreensão: com tantos movimentos, entidades, instituições, ativistas que atuam no espaço da cultura digital, que militam pela inclusão digital, que debatem internet livre, por que ninguém, ninguém foi ouvido até agora?
E, para terminar, como um país que aprova o Marco Civil da Internet, com debates compartilhados, com sugestões incorporadas e negociadas, que defende direitos dos usuários, e que tem uma presidenta que fez um discurso na ONU destacando a liberdade como principio de governança da internet, na contramão disso tudo, vai assinar um acordo com uma empresa e colocar a todos nós pra dentro de um cercadinho quando temos o mundo a nossa disposição?
No mínimo, falta transparência nessa conversa. E junho chegou. É quando foi anunciado que o Zuckberg virá visitar o Brasil e o acordo com o governo federal poderá ser assinado.
Mas, e se não for assim?
Sigo perguntando e ensaiando novos cenários, todos eles com muita democracia e participação!
PS – partícula adversativa – adversativa sf (lat adversativus) Conjunção coordenativa que liga palavras ou orações, estabelecendo, entre elas, ideia de oposição, contraste, compensação: A festa acabou, mas o barulho continuou. Não queria outra coisa senão folgar.
PS2 – estou retomando a periodicidade da coluna. Desculpe aos que tiveram que esperar mais tempo para conversar com a minha coluna. A próxima virá muito breve. E assim seguiremos conversando. Se você tiver algum tema ou um “E se não for assim?” pra me fazer refletir, não se acanhe, estou pronta para todo debate.
Beá Tibiriçá é “artivista”, diretora do Coletivo Digital e militante da inclusão digital, cultura livre e software livre.